Leveza para o final de semana!!!
Casa Paterna
Quando eu voltei pra casa, no verão, minha mãe me recebeu com lágrimas nos olhos, do mesmo jeito com que ela se despede quando volto para a capital. A vida na metrópole é muito dura. Só não passo fome por intervenção de familiares, como tios e avós, que contribuem, cada um à sua maneira, para minha permanência. Quando recorro a auxílios universitários, tenho a candidatura rechaçada por “não atender a pré-requisitos básicos” ou “por preferência dada a pessoas mais carentes”. Tudo bem, sei que tem muita gente em situação mais crítica do que a minha.
Mas estar em casa é tão bom que nem dá vontade voltar. Reencontro a família, meus irmãos, primos, amigos, saio à rua e tomo ar puro, coisas absolutamente raras ou inexistentes na capital. Minha mãe me ama tanto, nem sei como tanto amor é possível a um ser humano. Eu às vezes me sinto um criminoso por não corresponder a esse amor como deveria. Tenho gestos duros, sou um pouco orgulhoso e pouco afeito a carinhos e mimos. Sou um adulto já, as pessoas precisam entender isso. Precisam parar de se preocupar tanto, ligar todos os dias, mandar eu andar por este ou aquele caminho, não sair para lugares estranhos, ver com quem ando... De tudo isto já sei! Já sei!
Reencontro Lígia no mercado central. Um amor da adolescência que ruiu por falta de iniciativa da minha parte. Um grande amor que se desfez feito espumas ao vento. “Eu ainda gosto de você” digo a ela, sem vergonha. Ela finge que não ouve e muda de assunto. Começa a falar da faculdade dela no Norte do Estado.
“Eu ainda gosto de você, sou apaixonado por você ainda”. Será que é verdade mesmo?
“Nós não podemos dar certo” ela enfim me nota.
“Moramos muito longe um do outro, e você sabe que não existe amor que se sustente à distância por tanto tempo. Por que você não arranja uma namorada lá?”
“Por que lá ninguém liga pra ninguém”
Fico observando o movimento da feira, faço um lanche e vou embora. Lígia se despede de mim com um beijo no rosto. Com certeza já está de casório arranjado lá pelas margens do São Francisco.
Pai à cabeceira, hora do almoço. Minha mãe me chama. Num sussurro, ela me fala:
“Pede dinheiro a teu pai pra viagem, pra roupa, pra sapato”
“Mainha, por que a senhora não pede? A senhora sabe que eu não suporto pedir dinheiro a ele”
Minha mãe tem medo de meu pai. Por muitas vezes, quando criança, observei as brigas e as discussões intermináveis entre os dois, sendo que minha mãe quase nunca falava nada, só ele. Meu pai é açougueiro desde a infância, criado na roça. Ofício que veio do avô, que passou para o pai dele, que passou para ele. Conheceu a fome. Não sei que milagre aconteceu pra que ele me deixasse ir estudar na cidade grande. Até hoje reflito sobre isso. Na mesa, tomo coragem e falo:
“Painho, vou precisar de um trocado pra viagem e pra comprar roupa, que eu estou com poucas peças pra ir pra faculdade”
Ele fica calado, dando garfadas fortes na carne. Sua expressão é dura, parece até que eu o insultei. Fico impaciente com sua inércia.
“Ouviu, painho?”
Ele então irrompe, explosivo:
“Quando tiver comendo nessa casa, nessa mesa, não fale em dinheiro. Ouviu? Não fale em dinheiro” Em nenhum momento ele olha pra mim. Minha mãe pareceu constrangida.
“E outra, já não mando o bastante pra você? Já não mando o tanto certo de você passar o mês? Eu sou um escravo mesmo nessa casa, sou um escravo”.
Paro de comer. Vem-me subitamente uma ânsia de vômito. Mamãe começa a chorar do lado. Meus dois irmãos pequenos também a imitam e abrem o berro. Que inferno era morar naquela casa. Eu sabia que aquilo mais cedo ou mais tarde iria acontecer. Levanto da mesa, e saio até a varanda. Vou para a sombra de uma jaqueira próxima de casa e fico lá sentado, chorando amargamente. Meu Deus, que fiz para merecer tamanha humilhação? O correto mesmo a fazer era largar os estudos e arranjar um emprego por ali mesmo, pra me ver logo livre daquelas cenas e daquele ser desprezível. Um vira lata faminto vem até mim. Se até eu passo fome, miserável, como posso saciar a tua? Ele apenas me cheira e lambe meu pé, saindo logo em seguida. Minha mãe aparece para me consolar.
“Tua comida ficou todinha no prato”
“Fiquei sem fome, mainha”
“Vai lá. Volta lá, não dá o braço a torcer com aquele animal não” Ela parece mais calma agora. Mais firme.
“Não, mainha, como pode isso? Jogar na cara da gente que é feito de escravo? Eu não vou aceitar isso, ele é meu pai, meu pai!”
“Ele até tem um coração bom, no final das contas. Vai lá pra tu ver como tá”
Em casa, meu pai estava junto do fogão à lenha, tomando um gole de cachaça. Os olhos vermelhos e cheios d’água denunciavam a fraqueza do monstro. Sobre a mesinha de centro da sala, algumas notas, o suficiente pra eu voltar pra capital e pra comprar um par de sapatos e quem sabe uma camisa decente pra estudar.
Gostaram? que tal tranformar suas percepções em literatura também?
Esse texto faz parte da coleção literária do grupo "Sociedade dos Poetas Tortos". O grupo é composto por 14 anônimos que tem como único objetivo dividir seus mais íntimos pensamentos, que são mostrados sem nenhuma intenção de serem reconhecidos. Os textos podem ser encontrados pelo Instagram @tortospoetas e Facebook Sociedade dos Poetas Tortos e as edições impressas ficam disponíveis na portaria da FMB (Faculdade de Medicina da Bahia).
Se você também tem interesse de dividir seus textos com outras pessoas, compartilhe conosco. Após análise, seu texto poderá ser publicando no mural. Nesse caso, o anonimato é opcional. Contato: MURALDIGITALNAPP@GMAIL.COM
Reencontro Lígia no mercado central. Um amor da adolescência que ruiu por falta de iniciativa da minha parte. Um grande amor que se desfez feito espumas ao vento. “Eu ainda gosto de você” digo a ela, sem vergonha. Ela finge que não ouve e muda de assunto. Começa a falar da faculdade dela no Norte do Estado.
“Eu ainda gosto de você, sou apaixonado por você ainda”. Será que é verdade mesmo?
“Nós não podemos dar certo” ela enfim me nota.
“Moramos muito longe um do outro, e você sabe que não existe amor que se sustente à distância por tanto tempo. Por que você não arranja uma namorada lá?”
“Por que lá ninguém liga pra ninguém”
Fico observando o movimento da feira, faço um lanche e vou embora. Lígia se despede de mim com um beijo no rosto. Com certeza já está de casório arranjado lá pelas margens do São Francisco.
Pai à cabeceira, hora do almoço. Minha mãe me chama. Num sussurro, ela me fala:
“Pede dinheiro a teu pai pra viagem, pra roupa, pra sapato”
“Mainha, por que a senhora não pede? A senhora sabe que eu não suporto pedir dinheiro a ele”
Minha mãe tem medo de meu pai. Por muitas vezes, quando criança, observei as brigas e as discussões intermináveis entre os dois, sendo que minha mãe quase nunca falava nada, só ele. Meu pai é açougueiro desde a infância, criado na roça. Ofício que veio do avô, que passou para o pai dele, que passou para ele. Conheceu a fome. Não sei que milagre aconteceu pra que ele me deixasse ir estudar na cidade grande. Até hoje reflito sobre isso. Na mesa, tomo coragem e falo:
“Painho, vou precisar de um trocado pra viagem e pra comprar roupa, que eu estou com poucas peças pra ir pra faculdade”
Ele fica calado, dando garfadas fortes na carne. Sua expressão é dura, parece até que eu o insultei. Fico impaciente com sua inércia.
“Ouviu, painho?”
Ele então irrompe, explosivo:
“Quando tiver comendo nessa casa, nessa mesa, não fale em dinheiro. Ouviu? Não fale em dinheiro” Em nenhum momento ele olha pra mim. Minha mãe pareceu constrangida.
“E outra, já não mando o bastante pra você? Já não mando o tanto certo de você passar o mês? Eu sou um escravo mesmo nessa casa, sou um escravo”.
Paro de comer. Vem-me subitamente uma ânsia de vômito. Mamãe começa a chorar do lado. Meus dois irmãos pequenos também a imitam e abrem o berro. Que inferno era morar naquela casa. Eu sabia que aquilo mais cedo ou mais tarde iria acontecer. Levanto da mesa, e saio até a varanda. Vou para a sombra de uma jaqueira próxima de casa e fico lá sentado, chorando amargamente. Meu Deus, que fiz para merecer tamanha humilhação? O correto mesmo a fazer era largar os estudos e arranjar um emprego por ali mesmo, pra me ver logo livre daquelas cenas e daquele ser desprezível. Um vira lata faminto vem até mim. Se até eu passo fome, miserável, como posso saciar a tua? Ele apenas me cheira e lambe meu pé, saindo logo em seguida. Minha mãe aparece para me consolar.
“Tua comida ficou todinha no prato”
“Fiquei sem fome, mainha”
“Vai lá. Volta lá, não dá o braço a torcer com aquele animal não” Ela parece mais calma agora. Mais firme.
“Não, mainha, como pode isso? Jogar na cara da gente que é feito de escravo? Eu não vou aceitar isso, ele é meu pai, meu pai!”
“Ele até tem um coração bom, no final das contas. Vai lá pra tu ver como tá”
Em casa, meu pai estava junto do fogão à lenha, tomando um gole de cachaça. Os olhos vermelhos e cheios d’água denunciavam a fraqueza do monstro. Sobre a mesinha de centro da sala, algumas notas, o suficiente pra eu voltar pra capital e pra comprar um par de sapatos e quem sabe uma camisa decente pra estudar.
S. Salustiano
Gostaram? que tal tranformar suas percepções em literatura também?
Esse texto faz parte da coleção literária do grupo "Sociedade dos Poetas Tortos". O grupo é composto por 14 anônimos que tem como único objetivo dividir seus mais íntimos pensamentos, que são mostrados sem nenhuma intenção de serem reconhecidos. Os textos podem ser encontrados pelo Instagram @tortospoetas e Facebook Sociedade dos Poetas Tortos e as edições impressas ficam disponíveis na portaria da FMB (Faculdade de Medicina da Bahia).
Se você também tem interesse de dividir seus textos com outras pessoas, compartilhe conosco. Após análise, seu texto poderá ser publicando no mural. Nesse caso, o anonimato é opcional. Contato: MURALDIGITALNAPP@GMAIL.COM